Muitos amigos que mergulham em
apneia, assim como eu, ficaram chocados com a notícia e gostariam de entender
melhor o que pode ter acontecido e o que poderia ter sido feito para evitar
este acidente. Vou então tentar contribuir.
Praticamente todos os mergulhos
em apneia que já fiz em minha vida abaixo de 50 m de profundidade resultaram
neste mesmo tipo de barotrauma pulmonar que supostamente o Nicholas sofreu. Evidentemente,
com menor gravidade do que o dele.
Você termina o mergulho e, quando
chega à superfície, sente dificuldade de respirar, falta de ar e não consegue
encher completamente os pulmões. Sente que tem algum fluido nos pulmões que faz
um chiado ao respirar. A sensação é bem parecida com estar cheio de catarro.
Naturalmente, você sente vontade de tossir e puxar o “catarro” de dentro. Ao
cuspir, verifica que não tem nada do Hulk no cuspe, nem tampouco saliva, o
cuspe é praticamente todo de sangue.
Dependendo da intensidade do
barotrauma, você fica uns 1-2 dias cuspindo sangue. Enquanto ainda tem sangue
nos pulmões, você não é ninguém. Por mais que esteja em plena forma física,
fica extremamente cansado ao fazer qualquer atividade que não seja ficar
deitado. A saturação de O2 no sangue diminui e uma caminhada de 100 m parece
uma corrida de uma maratona. Mas o que então acontece?
Primeiro é importante entender
alguns conceitos relacionados a volumes pulmonares. O nosso volume pulmonar total (TLV) consiste na
capacidade total de armazenamento de ar nos pulmões após uma inspiração
forçada. O nosso volume residual (RV)
é o volume de ar que permanece nos pulmões após uma expiração forçada. O volume
residual existe porque você nunca
conseguirá esvaziar completamente os pulmões. Sempre fica um pouco de ar para,
pelo menos, manter os alvéolos abertos.
À medida que vamos descendo e
ganhando profundidade numa imersão em apneia, o ar contido em nossos pulmões
vai sendo comprimido juntamente com os próprios pulmões. Em teoria, se você
atingir uma profundidade em que os seus pulmões estejam comprimidos a volumes
menores do que o seu volume residual, você tem grandes chances de sofrer um lung squeeze (aperto do pulmão, da
tradução para o Português), que é o também chamado barotrauma pulmonar de
descida. Trata-se de um rompimento (hemorragia) dos estreitos vasos sanguíneos
(capilares) que fazem as trocas gasosas com os alvéolos (edema pulmonar). É
como se a pessoa se afogasse com o próprio sangue.
Existe uma fórmula para
determinar a profundidade máxima teórica que um apneísta poderá mergulhar sem
que os seus pulmões sejam comprimidos a volumes inferiores ao do volume
residual. A fórmula é TLC/RV = profundidade em ATM. Portanto, se um indivíduo
possui 10 litros de TLC (volume pulmonar total) e 2 litros de RV (volume residual),
o limite para os seus pulmões se comprimirem até o volume residual seria 5 ATM
(= 40 m).
Como falei, este se trata e um
limite teórico. Na prática, os apneístas conseguem ultrapassar o limite teórico
devido ao fenômeno de adaptação fisiológica conhecido como blood shift (deslocamento de sangue). O blood shift geralmente ocorre com o mergulho em profundidade em
apneia. Há uma vasoconstrição periférica onde os membros (braços e pernas)
param de receber sangue, que se desloca para região do tórax e pulmões. Como
resultado, os vasos capilares dos pulmões, agora mais “estufados” se projetam
para dentro dos espaços alveolares substituindo o ar e resultando em uma
redução no próprio volume residual que, por sua vez, estende o limite de
profundidade.
De qualquer modo, mesmo com o blood shift que protege os pulmões
contra a compressão, os capilares são muito sensíveis e podem se romper
facilmente, particularmente em algumas situações. As circunstâncias mais
freqüentes para a ocorrência de lung
squeeze são:
1) Realizar imersões profundas sem aquecimento. O
corpo precisa se adaptar aos poucos à profundidade para os pulmões irem
ganhando elasticidade negativa.
2) Segurar contrações durante mergulho profundo. Se
você começar a sentir vontade de respirar e tiver contrações em uma
profundidade em que o seu pulmão já esteja bastante comprimido, o movimento do
diafragma movimentando o abdômen para dentro irá gerar uma pressão negativa
ainda maior nos pulmões, aumentando o risco de lung squeeze.
3) Tentar equalizar usando a manobra de Valsalva
durante mergulho profundo. Em grandes profundidades, seus pulmões estarão
muito comprimidos. Se você tentar remover o pouco ar que ainda restam neles
para equalizar os ouvidos, a chance de sofrer um barotrauma será grande. Por
isso, nós apneístas utilizamos a manobra de Frenzel, onde a equalização é
executada utilizando-se apenas do ar contido na boca.
4) Realizar imersões com os pulmões vazios. Se você
soltar o ar antes de mergulhar, seus pulmões serão comprimidos até o volume
residual numa profundidade muito inferior do que aquela que eles seriam se
tivesse enchido completamente os pulmões. Isso poderia levar a barotraumas
mesmo no raso, como em 5 m de profundidade.
5) Tensão, falta de relaxamento e/ou falta de
elasticidade negativa da caixa torácica. Geralmente o medo ou ansiedade causa
tensão, propiciando o barotrauma. A ausência de elasticidade negativa da caixa
torácica é muito comum em atletas especialistas em modalidades de piscina.
Estes geralmente treinam muito para encher bastante os pulmões (elasticidade
positiva da caixa torácica), mas pouco para conseguir esvaziá-los bem
(elasticidade negativa), enfrentando dificuldades no mergulho em profundidade.
No caso do Nicholas, devemos
considerar alguns fatores que podem ter levado ao grave barotrauma que resultou
em sua morte:
1) Segundo relatos de amigos, o
Nicholas teria sofrido um lung squeeze
dois dias antes num mergulho que fez a 95 m de profundidade. Isso significa que
ele não teve tempo suficiente para se recuperar e a cicatrização dos vasos
rompidos ainda não estava completa.
2) Durante o mergulho a 72 m que
levou a sua morte, Nicholas teve problemas a 68 m (possivelmente dificuldade de
equalizar) e fez a virada para abortar o mergulho e retornar à superfície.
Entretanto, em frações de segundos, mudou de ideia e decidiu forçar um pouco
mais e descer os 4 m que restavam para atingir sua meta de 72 m. Isso
certamente gerou uma tensão e esforço extra, que, juntamente com uma possível
tentativa desesperada de forçar a equalização, pode ter propiciado o lung squeeze.
3) A modalidade de lastro
constante sem nadadeiras que o Nicholas estava praticando exige um esforço
muito grande, podendo gerar vontade de respirar e contrações no diafragma ainda
na descida ou início da subida, quando os pulmões estão muito comprimidos. Isto
também favorece um lung squeeze.
4) O fato de se estar em uma
competição internacional com grandes chances de boa colocação e recorde e
apenas uma chance para realizar o mergulho imprime uma pressão muito grande ao
atleta que estava treinando há meses só para aquele momento. O certo seria se
todos abortassem o mergulho se não estivessem se sentindo 100%, mas na prática
não é o que acontece em competições. Fica a lição de que nenhum recorde vale a
sua saúde e integridade física.
Dada as circunstâncias, o
barotrauma do Nicholas foi muito intenso e o extravasamento de muito sangue
para o interior dos pulmões impediu uma troca gasosa eficiente. Ele parece ter
morrido afogado no próprio sangue.
Não conheci o Nicholas, mas soube
que ele era muito querido por todos. Registro aqui as minhas condolências a sua
família e amigos.