quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Lung Squeeze (barotrauma pulmonar de descida) e o acidente com apneísta americano nas Bahamas

Esta semana o mergulho livre recebeu uma triste notícia. O recordista de apneia americano Nicholas Mevoli desmaiou e morreu logo após retornar de sua performance de 72 na modalidade lastro constante sem nadadeiras como resultado de um barotrauma pulmonar de descida. É a primeira vez em 21 anos da Associação Internacional para o Desenvolvimento da Apneia (AIDA) que um atleta morre durante uma competição. Maiores detalhes sobre o ocorrido podem ser vistos em: http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-times/2013/11/19/mergulhador-americano-morre-ao-tentar-bater-recorde.htm

Muitos amigos que mergulham em apneia, assim como eu, ficaram chocados com a notícia e gostariam de entender melhor o que pode ter acontecido e o que poderia ter sido feito para evitar este acidente. Vou então tentar contribuir.

Praticamente todos os mergulhos em apneia que já fiz em minha vida abaixo de 50 m de profundidade resultaram neste mesmo tipo de barotrauma pulmonar que supostamente o Nicholas sofreu. Evidentemente, com menor gravidade do que o dele.

Você termina o mergulho e, quando chega à superfície, sente dificuldade de respirar, falta de ar e não consegue encher completamente os pulmões. Sente que tem algum fluido nos pulmões que faz um chiado ao respirar. A sensação é bem parecida com estar cheio de catarro. Naturalmente, você sente vontade de tossir e puxar o “catarro” de dentro. Ao cuspir, verifica que não tem nada do Hulk no cuspe, nem tampouco saliva, o cuspe é praticamente todo de sangue.

Dependendo da intensidade do barotrauma, você fica uns 1-2 dias cuspindo sangue. Enquanto ainda tem sangue nos pulmões, você não é ninguém. Por mais que esteja em plena forma física, fica extremamente cansado ao fazer qualquer atividade que não seja ficar deitado. A saturação de O2 no sangue diminui e uma caminhada de 100 m parece uma corrida de uma maratona. Mas o que então acontece?

Primeiro é importante entender alguns conceitos relacionados a volumes pulmonares. O nosso volume pulmonar total (TLV) consiste na capacidade total de armazenamento de ar nos pulmões após uma inspiração forçada. O nosso volume residual (RV) é o volume de ar que permanece nos pulmões após uma expiração forçada. O volume residual existe  porque você nunca conseguirá esvaziar completamente os pulmões. Sempre fica um pouco de ar para, pelo menos, manter os alvéolos abertos.

À medida que vamos descendo e ganhando profundidade numa imersão em apneia, o ar contido em nossos pulmões vai sendo comprimido juntamente com os próprios pulmões. Em teoria, se você atingir uma profundidade em que os seus pulmões estejam comprimidos a volumes menores do que o seu volume residual, você tem grandes chances de sofrer um lung squeeze (aperto do pulmão, da tradução para o Português), que é o também chamado barotrauma pulmonar de descida. Trata-se de um rompimento (hemorragia) dos estreitos vasos sanguíneos (capilares) que fazem as trocas gasosas com os alvéolos (edema pulmonar). É como se a pessoa se afogasse com o próprio sangue.

Existe uma fórmula para determinar a profundidade máxima teórica que um apneísta poderá mergulhar sem que os seus pulmões sejam comprimidos a volumes inferiores ao do volume residual. A fórmula é TLC/RV = profundidade em ATM. Portanto, se um indivíduo possui 10 litros de TLC (volume pulmonar total) e 2 litros de RV (volume residual), o limite para os seus pulmões se comprimirem até o volume residual seria 5 ATM (= 40 m).

Como falei, este se trata e um limite teórico. Na prática, os apneístas conseguem ultrapassar o limite teórico devido ao fenômeno de adaptação fisiológica conhecido como blood shift (deslocamento de sangue). O blood shift geralmente ocorre com o mergulho em profundidade em apneia. Há uma vasoconstrição periférica onde os membros (braços e pernas) param de receber sangue, que se desloca para região do tórax e pulmões. Como resultado, os vasos capilares dos pulmões, agora mais “estufados” se projetam para dentro dos espaços alveolares substituindo o ar e resultando em uma redução no próprio volume residual que, por sua vez, estende o limite de profundidade.

De qualquer modo, mesmo com o blood shift que protege os pulmões contra a compressão, os capilares são muito sensíveis e podem se romper facilmente, particularmente em algumas situações. As circunstâncias mais freqüentes para a ocorrência de lung squeeze são:

1) Realizar imersões profundas sem aquecimento. O corpo precisa se adaptar aos poucos à profundidade para os pulmões irem ganhando elasticidade negativa.

2)     Segurar contrações durante mergulho profundo. Se você começar a sentir vontade de respirar e tiver contrações em uma profundidade em que o seu pulmão já esteja bastante comprimido, o movimento do diafragma movimentando o abdômen para dentro irá gerar uma pressão negativa ainda maior nos pulmões, aumentando o risco de lung squeeze.

3) Tentar equalizar usando a manobra de Valsalva durante mergulho profundo. Em grandes profundidades, seus pulmões estarão muito comprimidos. Se você tentar remover o pouco ar que ainda restam neles para equalizar os ouvidos, a chance de sofrer um barotrauma será grande. Por isso, nós apneístas utilizamos a manobra de Frenzel, onde a equalização é executada utilizando-se apenas do ar contido na boca.

4)   Realizar imersões com os pulmões vazios. Se você soltar o ar antes de mergulhar, seus pulmões serão comprimidos até o volume residual numa profundidade muito inferior do que aquela que eles seriam se tivesse enchido completamente os pulmões. Isso poderia levar a barotraumas mesmo no raso, como em 5 m de profundidade.

5)   Tensão, falta de relaxamento e/ou falta de elasticidade negativa da caixa torácica. Geralmente o medo ou ansiedade causa tensão, propiciando o barotrauma. A ausência de elasticidade negativa da caixa torácica é muito comum em atletas especialistas em modalidades de piscina. Estes geralmente treinam muito para encher bastante os pulmões (elasticidade positiva da caixa torácica), mas pouco para conseguir esvaziá-los bem (elasticidade negativa), enfrentando dificuldades no mergulho em profundidade.


No caso do Nicholas, devemos considerar alguns fatores que podem ter levado ao grave barotrauma que resultou em sua morte:

1) Segundo relatos de amigos, o Nicholas teria sofrido um lung squeeze dois dias antes num mergulho que fez a 95 m de profundidade. Isso significa que ele não teve tempo suficiente para se recuperar e a cicatrização dos vasos rompidos ainda não estava completa.

2) Durante o mergulho a 72 m que levou a sua morte, Nicholas teve problemas a 68 m (possivelmente dificuldade de equalizar) e fez a virada para abortar o mergulho e retornar à superfície. Entretanto, em frações de segundos, mudou de ideia e decidiu forçar um pouco mais e descer os 4 m que restavam para atingir sua meta de 72 m. Isso certamente gerou uma tensão e esforço extra, que, juntamente com uma possível tentativa desesperada de forçar a equalização, pode ter propiciado o lung squeeze.

3) A modalidade de lastro constante sem nadadeiras que o Nicholas estava praticando exige um esforço muito grande, podendo gerar vontade de respirar e contrações no diafragma ainda na descida ou início da subida, quando os pulmões estão muito comprimidos. Isto também favorece um lung squeeze.

4) O fato de se estar em uma competição internacional com grandes chances de boa colocação e recorde e apenas uma chance para realizar o mergulho imprime uma pressão muito grande ao atleta que estava treinando há meses só para aquele momento. O certo seria se todos abortassem o mergulho se não estivessem se sentindo 100%, mas na prática não é o que acontece em competições. Fica a lição de que nenhum recorde vale a sua saúde e integridade física.

Dada as circunstâncias, o barotrauma do Nicholas foi muito intenso e o extravasamento de muito sangue para o interior dos pulmões impediu uma troca gasosa eficiente. Ele parece ter morrido afogado no próprio sangue.

Não conheci o Nicholas, mas soube que ele era muito querido por todos. Registro aqui as minhas condolências a sua família e amigos.

Finalizo o post com o link para algumas dicas da amiga e atleta Kathryn Mcphee para evitar o lung squeeze e como proceder caso aconteça: http://kathrynmcphee.blogspot.com.br/2009/11/lung-squeeze-clarified.html




5 comentários:

  1. Poxa, texto muito bom, bem didático e serve para ensinar a galera que desce 5 metrinho com o pulmão vazio.

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  2. através da inspiração completa e espiração completa é possível medir o ar que saiu. Que seria o resultado da subtração "TLV - RV". Mas com medir o RV?

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  3. Sou instrutor de mergulho scuba e essa foi a mais clara explicação para a fisiologia de apnéia profunda que já vi. será incorporada a meu curso de open water. Obrigado!

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  4. Obrigado pela explicação!! Parabéns pela didática!!

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  5. RIcardo excelente comentários !Obrigado Mestre !

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